O Profissional e o “papo furado”
Nos últimos tempos, escutando vários discursos sobre ‘ser profissional’ na capoeira, me pergunto: – o que isso quer dizer de uma pessoa para outra e o que realmente está por trás dessa afirmação? Essa reflexão me lembra uma conversa lamentável que ouvi há uns anos atrás entre ‘profissionais’ da capoeira: “hoje em dia a gente nem está mais preocupado em o aluno ficar bom, a gente só está preocupada em ter aluno”. No momento que isso foi dito, parecia ser a constatação de um fato e que todos os presentes professores pareciam estar de acordo, sem a mínima preocupação nas consequências do conteúdo, daquela frase.
Sim, a capoeira é uma reflexão da sociedade em que vivemos, uma sociedade que gira em torno de um esquema de acumulação, o dito capitalismo. E para quem vive da capoeira, em outras palavras, quem depende da capoeira para pagar as contas e sustentar uma família, um aluno também representa capital, sobrevivência. Mas será que a gente não pode fazer melhor do que isso? Será que os capoeiristas se deixam vencer tão facilmente por um sistema que tem base em – e é causa – da mesma miséria onde a nossa arte se criou; a escravidão? E isto mesmo, ‘ser profissional’?
Para quem não tinha noção, a escravidão não só foi a situação onde a capoeira nasceu; ela também foi a base de um sistema econômico baseada na exploração do produtor da riqueza – o escravo, que, quando o sistema escravocrata foi deixado por ser ineficiente e caro demais, se tornou trabalhador ‘livre’. O racismo e a opressão das expressões culturais da população negra – contra que a capoeira sempre se resistiu – foram parte e em função do sistema económico da exploração – e a base do capitalismo.[1]A economia se desenvolveu, mas na base não se mudou – será que o papel da resistência da capoeira deveria se mudar?
O ‘profissionalismo’ entrou numa nova fase com o desenvolvimento das certificações e diplomas para capoeiristas que querem dar aula – e se tornar ‘profissional’ – dentro do sistema nacional de educação ou até fora dele. Com a preocupação do nível e qualidade dos professores, e o ensinamento de capoeira, os certificados arriscam virar mais um esquema de acumulação, ou capitalização – dentro da “profissionalização da capoeira”; Certificações que precisam ser renovadas de tantos em tantos anos, através dos investimentos financeiros que são justificados como investimento em conhecimento. Como um preço para o novo documento também, é claro. Assim também desprezando o tipo de conhecimento que a capoeira representa, e em que ela tem a sua base, que é o conhecimento prático através da experiência prática – a educação não-formal, da tradição oral.
Não quer dizer que o conhecimento teórico não tem lugar na capoeira, ou que não deveria existir um certo‘controle de qualidade’, especificamente fora do Brasil onde não há uma tradição enraizada, para trabalhos com crianças e nos sistemas nacionais de educação. E que um bom professor – não importa de qual modalidade – deveria estar em dia com os desenvolvimentos na sua área, e nas áreas abordadas.
Mas será que uma estrutura de certificação e educação contínua, um sistema baseado nas profissões médicas – onde o não ser em dia do médico em termos de novos conhecimentos, pode ser causa da morte do paciente – é o mais adequado? Quando a variedade de estilos, formas de pensar e ensinar a capoeira é um lado forte dela em termos de criatividade, desenvolvimento e abertura social? E essa variedade ao mesmo tempo representa uma proteção contra a dominação, qualquer que seja ela? Vamos abrir mão para um sistema de uniformização ou normatização? Sem perguntar para nós mesmos para que, e para quem, a capoeira serve? Ainda mais quando não temos um sistema de valorização do conhecimento que já existe em cada um de nós e na própria capoeira? Somente para poder ser identificado como ‘profissional’ e tentar arrumar mais trabalho?
O que é ser ‘profissional’? Começamos com a palavra ‘profissionalismo’, que tem dois significados: o significado mais antigo, que a primeiro vez foi usado em 1856[2]e se desenvolveu desde então, é: “comportamento, objetivos ou qualidades que marcam ou caracterizam uma profissão ou um profissional”.[3]Um significado que tem a ver com postura, atitude, visão e preocupação com o aluno, o conteúdo ensinado e o resultado.
O segundo significado é usado hoje, por exemplo, em quase todos modalidades desportivas, que fazem uma distinção entre profissionais e amadores: “o profissional é aquele que ganha, ou tenta ganhar, a vida com o seu desporto, e faz disso a sua ‘profissão’.
Note bem a diferença entre o primeiro e o segundo significado: O primeiro tem conteúdo, e compromisso com a atividade. O segundo está relacionado coma acumulação de dinheiro. Quer dizer que os dois são incompatíveis? Claro que não, e há vários exemplos de bons profissionais de capoeira que também se dão bem em termos financeiros. Mas talvez é hora de se perguntar qual tipo de ‘profissional’ nós queremos ser: aquele que é mais preocupado em ganhar dinheiro, ou aquele que primeiramente tem compromisso com a sua arte; uma arte que inclui um compromisso com uma tradição de oralidade, com uma ética dentro essa oralidade e com uma transmissão do conhecimento que a arte represente. É bom ter esses princípios claros, porque o poder corrompe, e dinheiro – como a fama – são formas de poder.
E assim uma pergunta simples precisa ser perguntada cada vez de novo – no momento de aceitar e preparar um show, de fazer e vender um instrumento ou roupa, de fazer um CD ou DVD, de fazer pesquisa e escrever um livro, e de escolher em quais eventos de capoeira nós vamos participar – aquele que paga mais, ou aquele que tem e/ou segue uma tradição e filosofia, ou aquele que é do nosso amigo? Exemplos das respostas – e resultados delas – podemos achar na história da capoeira.
E ainda nem falei do ‘profissionalismo’ do professor da capoeira: porque um professor – de qualquer modalidade que seja – só existe pelo fato que é aquele/a que ensina. Cuja primeira preocupação então – só pela definição da palavra – sempre deveria ser a educação, e o crescimento do conhecimento e a pessoa; no caso o aluno, mas também em si mesmo. Voltando ao primeiro significado da palavra ‘profissional’ então. Que também tem nada a ver com o ego ou o abuso de poder – um tema onde eu volto nas próximas colunas.
Por isso iniciativas que tem como objetivo e preocupação, a educação e a pedagogia, e são baseados no princípio de democratizar o conhecimento e a informação (ao tornar lhes acessível para todos) – como por exemplo o IBCE de mestre Ferradura, ou a Capoeira à la Une de mestre Beija-Flor e alunos – são louváveis.
Porque um compromisso com uma arte, e uma preocupação com a educação, não necessariamente deveria levar ao empobrecimento; mesmo num sistema onde a educação é cada vez mais falada, e menos valorizada. Mas esse compromisso é sim fundamental. Porque um bom professor é reconhecido e valorizado com o tempo.
[1]Veja por exemplo: Beckert, S. & Rockman, S. (org.) (2016) Slavery’s Capitalism: a new history of American Economic Development, Pennsylvania, Penn Press. Cardoso, F.H. (1977) Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, São Paulo, Paz e Terra. Williams, E. (2012)Capitalismo e Escravidão, trad. D. Bottmann, São Paulo, Companhia das Letras [1944]. Marquese, R. & Salles, R. (org.) (2016) Escravidão e Capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil, Estados Unidos, Rio de Janeiro, José Olympio. Corrêa do Lago, L.A. (2014) Da Escravidão ao Trabalho Livre: Brasil 1550-1900, São Paulo, Companhia das Letras.
[2]Em 1856 a primeira escrita expressão de ‘profissional’ é usada pela Glasgow Institute de Contabilidade, para indicar os membros como parte do instituto e então como contabilistas registradas. Que deveria representar uma certa garantia de qualidade. Walker, S. P. & Lee, T.A. (Eds.) Studies in Early Professionalism: Scottish Chartered Accountants, 1853-1918. London, Routledge.
[3]Merriam-Webster Dictionary Online. www.merriam-webster.com
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